David Pinheiro

2024.04.02

Chaga: Ferida aberta, não cicatrizada; em sentido figurado problema grave, de que resultam sérios danos (materiais ou morais); aflição, mágoa; defeito, pecha (significado descrito em Infopedia)

O significado de chaga reflete bem o resultado das eleições legislativas do passado dia 10 de março, pois daí surgiu uma ferida aberta na sociedade portuguesa e, tão cedo, não se perspetiva como a poderemos cicatrizar. Isto porque este resultado põe em contraponto duas visões distintas para uma vivência em sociedade.

Anos de políticas desastrosas para uma larga franja das populações, serviços públicos sem capacidade de resposta, casos permanentes de alegada corrupção, situações evidentes de potencial conflito de interesses entre atores políticos e grupos empresariais ou escritórios de advogados ou a opacidade nos processos de decisão resultantes de um lobbying não regulado são apenas alguns dos exemplos que minaram a confiança dos portugueses nas instituições e conduziram a um descrédito na gestão da coisa pública. Este descrédito abriu caminho para o confronto de duas perspetivas da sociedade.

Por um lado, uma visão de desagrado com o rumo do país, de quem prefere uma mudança na governação, assente na preservação dos valores democráticos e no funcionamento das instituições. Nesta perspetiva procuram-se alternativas democráticas dentro do quadro político nacional, ora concretizada por uma abordagem diferente na governação, que vise a transformação do país e (suposta) melhoria da qualidade de vida dos portugueses, ora por uma continuidade das políticas anteriores, ainda que elas próprias sejam causadoras da descrença de muitos e do descrédito das instituições.

Por outro lado, uma visão de protesto, por quem deixou de acreditar no “sistema” e que, na sua maioria, revela uma desconsideração pelo regular funcionamento das instituições democráticas e nem sequer quererá saber da bondade ou aplicabilidade de propostas apresentadas.

Para satisfazer esta visão de protesto é suficiente gritar para se criar o alvoroço, ainda que o resultado deste ruído seja a inoperância das instituições ou o caos generalizado. Uma berraria que tenta chegar a todos e mais alguns (forças de segurança, profissionais de saúde, oficiais de justiça, pensionistas, etc, etc), ao sabor do surgimento deste ou daquele apelo, mesmo sabendo que determinados compromissos obrigam a um enquadramento orçamental (corte de despesas ou aumento de impostos), mas que a esta perspetiva ruidosa nada diz pois o que interessa mesmo é o ganho (eleitoral) imediato a que muitos se vergam. É esse o único objetivo, conquistar o poder, mesmo que para isso tenham de dizer tudo e o seu contrário ou que, verdadeiramente, se estejam “nas tintas” para o que o povo precisa.

Uma coisa é certa, em ambas as perspetivas verifica-se uma desconfiança generalizada da atividade política em Portugal. Mas enquanto uns afirmam um caminho extremado e caótico, antecipando um Deus, Pátria, Família autocrático e castrador de liberdades e garantias, outros persistem no modelo democrático que um dia Churchill descreveu como “o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”, mas que ainda hoje subsiste como responsável das liberdades e garantias essenciais ao nosso modo de vida ocidental.

É por isso que apesar do justificado descontentamento generalizado e desconfiança da atividade política, todos estamos convocados para combater esta chaga na sociedade portuguesa, com exigência e escrutínio permanentes àqueles a quem delegamos a nossa representação nas instâncias políticas.

É muito difícil acompanhar a atividade política local ou nacional depois de um dia de trabalho, de obrigações familiares ou de um conjunto de outras tarefas pessoais, mas para preservar liberdades e garantias consagradas como as temos hoje precisamos desse esforço adicional. Esforço esse que é já assumido por muitos, mas num mundo em que somos inundados de informação a toda a hora as instituições públicas têm a responsabilidade acrescida de aproximar os órgãos de decisão da sociedade civil.

Há hoje ferramentas e instrumentos que permitem tornar os processos políticos mais transparentes, mais acessíveis e participados e é por isso fundamental que, em primeira linha, quem está ao serviço do poder democrático facilite o trabalho ao cidadão e promova as melhores práticas nas decisões proferidas, suportadas num comportamento ético irrepreensível e que permita devolver a confiança nas instituições democráticas, para cicatrizar uma ferida que teima em alastrar-se na nossa sociedade.

Têm a palavra os políticos!

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